A NAVEGAÇÃO DE HILCÁRIO

O ônibus cortava as coxilhas e acompanhava as ondulações do terreno na suavidade de um tobogã. As janelas semiabertas permitiam ao jovem estudante Hilcário acompanhar a paisagem que corria para trás. O carro estava lotado, e muitas pessoas, inclusive ele, viajavam em pé. De repente, como num filme, um avião cruzou a baixa altura cortando a frente do coletivo. Hilcário inclinou-se para acompanhar a aeronave que mergulhou em direção a uma várzea encaixada entre duas ladeiras povoadas de carquejas. O avião, que passou a voar rente ao solo, uma cena jamais vista, foi o que mais o surpreendeu. Como um cometa deixou para trás uma esteira de vapor que se depositou com suavidade sobre o solo. Era o capricho do vento que estendia um lençol branco com delicadeza. Como numa película, a cena nutria as imaginações de Hilcário. Ele sonhava.
Confortavelmente instalado dentro de um avião do CAN – Correio Aéreo Nacional, Hilcário sente flutuar cada vez mais alto. O batismo do ar não deixa dúvidas de que ele irá voar um dia, apesar de tudo. Antes disso, pequenos dramas da vida terão que ser arranjados.
Sentado ao lado de uma janela, no quarto andar do prédio da Universidade, Hilcário tem sua atenção voltada para os helicópteros e aviões que executam exercícios sobre um alvo próximo à cabeceira da pista. Sente o poder mortífero dos disparos das armas que parecem dilacerar seu ventre. As quatro aulas de matemática, na tarde de uma monótona e escaldante sexta-feira, não lhes despertam interesse. Ele não tem nenhuma intimidade com X, e nem com Y. Ao final do semestre, a reprovação comprova esse desdém. Porém, do seu camarote, o cenário visto do lado de fora da janela sustenta cada vez mais seu desejo de voar. Depois que Hilcário compreendeu o princípio da alavanca de Arquimedes, cuja frase jamais foi esquecida; “Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio, e eu moverei o mundo”, chegou à conclusão de que esse princípio revelava a simplicidade da regra de três. Com ela, ele iria conquistar o mundo. Liberando-se de X e Y, lançou-se na busca do seu ideal como um leão que corre atrás de sua presa.
Para Hilcário, a escola de voo era uma extensão do seu lar. O cheiro de combustível exalava um perfume que alimentava a vida. Os aparelhos de medições meteorológicas instalados sobre a torre da estação do rádio telégrafo indicavam com precisão as verdades elementares do tempo. Os aviões de instrução perfilados sobre um pátio retangular de grama bem aparada aguardavam os alunos para os exercícios da alma. O instrutor de voo corrigia-o. “Suave no uso do manete, seja prudente com o manche e os pedais. O avião é um ser que não aceita brutalidade. Muito bem! Mantenha a velocidade nas curvas. Aproa o nariz do avião na direção daquele telhado luminoso, e voe em linha reta. Por favor, mantenha o ponteiro do altímetro fixo em dois mil pés. Faça uma curva de 180 graus. Pronto! Agora uma descida suave. Velocidade constante de 100 km/h. Mantenha o voo em mil pés para entrar no circuito de tráfego do aeródromo”. Essas lacônicas ordens eram como trechos de uma oração. Fostes muito bem! Hilcário não conseguia dissimular a vaidade enquanto desembarcava do avião. Por um instante, remexeram nas cinzas da memória aqueles atos sustentados pelo poder da alavanca. Agora o tempo urge. Outra batalha recomeça. Preparar-se definitivamente para a conquista. A realização de um longo sonho o impacienta.
“Vamos lá, pessoal! Com esse vento nada de voo. Todos à sala de aula”. Assim iniciavam-se os preparativos para o jogo final. Hoje o vento deu uma trégua. “Preparemo-nos para voar. Quem cometer um deslize pagará uma multa”. Instrutor intransigente, o mestre dos segredos do voo a baixa altura. Cada um, a seu turno, decolava para provar as suas aptidões. “Podes baixar um pouco mais. Sem exageros. Isso! Um pulo suave sobre a mata. Cuidado com a rede de alta tensão! Movimentos suaves. Não te apresses na curva de retorno. Um estol não perdoa a imprudência”. O treinamento está encerrado. Como os demais, Hilcário fará parte de uma plêiade de aviadores agrícolas espalhados mundo afora.
O piloto deve apresentar-se à direção. “Amanhã o senhor deverá deslocar-se para o sul”. “Mas…senhor! a bússola está inoperante. Como vês, o tempo está encoberto e chove”. “Você sabe meu piloto, basta seguir a ferrovia. Vá! Te arranje. Estão te aguardando”. “Está bem. Ordene que o mecânico faça uma revisão no avião. É necessário liberar a bússola travada, limpar as velas e trocar o óleo. O magneto esquerdo trepida um pouco”. O mecânico checa o motor e entrega o avião a Hilcário. Os tanques de combustível estão completos. Esses preparativos bem arranjados põem em ordem os próximos movimentos. Hilcário examina mais uma vez o seu habitáculo. Olha para fora da vigia. Lá fora, cai uma chuva fina. Se a bússola travar, isso não privará o piloto de chegar ao seu destino. Na falta dela, os pilotos se utilizam de outros segredos da navegação. Sempre atento ao traçado fiel da ferrovia, o avião desaparece no meio do chuvisco.
Um auxiliar o recebe. “No escritório estão lhe aguardando. Amanhã, muito cedo, o senhor deverá voar até à fronteira internacional”. Num mapa lhe indicam onde encontrar a pista de pouso. Dizem estar no meio de um campo plaino a perder de vista. “Neste posto de combustível, o senhor gira 90 graus à esquerda e segue a carreteira. Na sua extremidade, um pouco à direita, encontrarás a pista de pouso demarcada com bandeirolas brancas”. Hilcário, que tinha uma certa intimidade com a geografia, analisou a carta geográfica, cuja leitura não lhe reservava segredos. Ele fez seus julgamentos. “Decolo no sentido leste – oeste com os faróis ligados, pulo o rio, intercepto a rodovia iluminada pelos automóveis que me levarão até a próxima cidade distante cem quilômetros”. Despediu-se e foi dormir. Apesar da chuva, que persistia, isso não o preocupava. As previsões meteorológicas sinalizavam bom tempo para o novo dia. Safo no ofício, estava seguro de suas responsabilidades.
O despertador deu o alarme. Era hora de partir. A decolagem aconteceu dentro da normalidade. O céu estrelado mostrava sinais de que a aurora estava prestes a revelar o mundo. Navegando, o piloto sabia que o sol ficaria às suas costas. No entanto, aos primeiros sinais do dia, a claridade apareceu ao seu lado esquerdo. Antes de uma curva para a direita, um anel dourado no horizonte mostrou os primeiros raios do astro poderoso. Quando o avião girou para a direita, o sol ficou às costas do piloto. Novamente fez seus julgamentos. As estradas são assim mesmo. Às vezes elas nos enganam pelas suas constantes mudanças de rumo. Do lado direito da rota, a poucos quilômetros, uma enorme muralha de nevoeiro o acompanhava. Cruzou a cidade que estava mergulhada parcialmente na bruma. Logo à frente, Hilcário visualizou um aeroporto dotado de uma torre de controle. A longa pista mostrava um asfalto novo com pinturas brancas muito vivas. Outra vez o piloto fez seus julgamentos. Esqueceram de noticiar o novo aeroporto nessa cidade. Isso é muito estranho. Enfim, Hilcário teria que voar mais 30 km, e então girar à esquerda para chegar ao destino. Para seu desgosto, a densa massa leitosa do persistente nevoeiro fechou o horizonte. E ele continuou a sentenciar. Estou tão próximo do meu destino. Um nevoeiro na primavera é apenas um vapor que aos primeiros raios do sol se dissipa. Aproveitarei a ausência de trânsito na rodovia para fazer uma espera. A enorme quantidade de crateras não permitiu o pouso planejado. Mas havia as coxilhas. A superfície lisa e bem aparada indicava uma pista alternativa perfeita. O avião correu ladeira acima e parou no seu dorso. O piloto caminhou até a rodovia. Não foram necessários mais que alguns minutos para interpelar um jovem que se deslocava arqueado sobre uma moto estridente. Bom-dia! Teve como resposta um lacônico e gutural, buen día! Ao ser questionado sobre a extensão do nevoeiro para os lados do seu destino, o castelhano, espantado, alertou Hilcário de que ele não estava indo a Rio Guaiana, mas logo adiante ele chegaria à cidade uruguya de Taquarén.
Como um filme que retrocede em alta velocidade, em frações de segundos Hilcário compreendeu seu excesso de confiança e os falsos julgamentos. Hasta luego amigo! Contando com a sorte, evitou-se um embaraço diplomático de consequências imprevisíveis com o governo uruguayo. Sabendo que não havia razões para fazer novos julgamentos, o aviador forasteiro retornou de imediato à sua Base. Nos tempos de Hilcário não havia GPS. Mas havia a bússola. Ah! A bússola.

Autor. Teomar B. Ceretta