O uso do imóvel agrário na parceria rural

O uso do imóvel agrário na parceria rural

por Albenir Querubini e Wellington Gabriel Z. Barros.

O presente artigo propõe realizar breves comentários sobre questões práticas decorrentes do uso do imóvel agrário pelos contratantes da parceria rural, em especial sobre os limites da exploração do imóvel pelo parceiro-outorgado.

A parceria rural é a modalidade típica de contrato agrário, de natureza societária, caracterizada pela cessão do uso específico e temporário de determinado imóvel agrário[1] para fins de exploração de atividade agrária[2] e [3].  No caso da parceria rural, a relação contratual agrária possui como partes o parceiro-outorgante (em regra, o proprietário, podendo ser pessoa física, jurídica ou entes juridicamente despersonalizados, a exemplo do condomínio, espólio ou a massa falida) e o parceiro-outorgado (aquele que não é proprietário, seja pessoa física ou jurídica).

[1] Vale recordando que, nos termos do inciso I do art. 5º do Estatuto da Terra, entende-se por imóvel agrário ou rural o “prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”. Aqui cabe pontuar que o termo imóvel agrário é tecnicamente mais adequado do que a opção legislativa, uma vez que o termo “rural” pode gerar confusão interpretativa, uma vez que é termo vulgarmente utilizado como contraposto ao “urbano”.  Outro ponto a ser destacado é o fato que os imóveis agrários já não mais poderem ser vistos como meros “prédios rústicos”, uma vez que em muitos imóveis agrários brasileiros há grande emprego de tecnologias e inovações. Sobre imóveis agrários, vide o clássico: REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade. Curitiba: Editora Juruá, 2007.  Ainda, sobre as características dos imóveis agrários brasileiros, recomenda-se como leitura: BUAINAIN, Antônio Márcio; ALVES, Eliseu; SILVEIRA, José Maria da; NAVARRO, Zander. O mundo rural no Brasil do século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília: Embrapa, 2014.

[2] A Lei nº 11.443/2007, ao acrescentar o § 1º ao art. 96 do Estatuto da Terra, trouxe a seguinte definição e elemento definidores do contrato de parceria rural, ao prever que: “Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes dele, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e/ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; e/ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante partilha, isolada ou cumulativamente, dos seguintes riscos: I – caso fortuito e de força maior do empreendimento rural; II – dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais estabelecidos no inciso VI do caput deste artigo; III – variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural”.

Vale lembrar que o uso do imóvel agrário na parceria rural possui natureza jurídica obrigacional, decorrendo do respectivo contrato agrário, não se confundindo com o “uso” previsto no art. 1.412 do Código Civil (que é instituto de direito real), conforme destacado por Zibetti e Querubini[1]. Importante destacar que no contrato de parceria rural não há transferência da posse ao parceiro-outorgado, diferentemente do que ocorre com o arrendamento rural, em que o arrendador transfere ao arrendatário a posse direta sobre o imóvel agrário. Isso significa que o parceiro-outorgado é tão somente um usuário da terra ou dos bens cedidos pelo parceiro-outorgante, posto que sua participação da parceria decorre do seu trabalho.

O entendimento de que o parceiro-outorgado não possui posse decorre de interpretação do agrarista Wellington Pacheco Barros fornecida na leitura do esboço do presente artigo. Segundo ele o Capítulo IV do Estatuto da Terra dá esse norte quando diz “do uso ou da posse temporária da terra”, lembrando que, nas suas palavras, “a legislação agrária foi toda ela escrita na perspectiva da parte considerada mais fraca”. Também cabe registrar, por sua vez, que o agrarista Washington Carlos de Almeida, questionado sobre o tema pelos autores do presente artigo, posicionou-se pela existência de composse entre os parceiros, em que pese não haja uma transferência de posse ao parceiro-outorgado, o qual assume a qualificação de co-possuidor. Segundo o professor Washington, o art. 1.228 do Código Civil[2] prevê que somente o proprietário possui os direitos de usar, fluir e dispor do imóvel agrário, sendo que o possuidor na qualidade de arrendatário pode usar e fruir da coisa, mas na parceria rural o parceiro-outorgado usa o bem de comum acordo com o proprietário (que detém a posse direta da coisa). Por fim, Washington lembra ainda que tanto no caso do arrendamento quanto da parceria rural deve ser observado o princípio da autonomia privada contida no art. 421 do Código Civil[1], pois, independentemente do Estatuto da Terra e do Decreto nº 59.566/1966, as partes são livres para acordar aquilo que quiserem no contrato relativamente à disciplina do imóvel, observando que ambas as modalidades contratuais agrarias geram o dever de restituir a coisa pelo arrendatário ou pelo parceiro-outorgado.

A questão do uso do imóvel está diretamente relacionada com o avanço das técnicas para aumento de produtividade, bem como a necessidade de produção de alimentos no mundo, uma vez que cresce cada vez mais a relevância da maximização sustentável das potencialidades do imóvel rural para o desenvolvimento da atividade agrária[2]. Nesse sentido, inclusive, merece destaque a popularização da adoção do sistema de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) no Brasil como estratégia de melhor utilização dos imóveis agrários e aumento de produtividade[3].

Especificamente naquilo que diz respeito aos contratos agrários, sabe-se que a atividade desenvolvida na parceria rural deve respeitar as limitações do contrato relativamente à área e ao tipo de atividade de exploração desenvolvida (agricultura, pecuária, silvicultura e/ou agroindustrialização). Por exemplo, se o contrato prevê a atividade agrária exclusiva sobre determinada gleba, apenas sobre ela é que se desenvolverá o uso pactuado no contrato, sob pena de caracterizar infração contratual.

No entanto, observando as tendências de maior e mais eficiente aproveitamento dos imóveis agrários, é importante ressaltar a possibilidade de convivência harmoniosa de mais de uma atividade agrária sobre a mesma área, ainda que sobre elas incidam contratos agrários ou civis discrepantes.

Como exemplo, durante o período de inverno dos Estados do Sul do país, temos o exemplo clássico do contrato de pastoreio[1], o qual possibilita o desenvolvimento de atividade agrária pecuária na lacuna do ciclo de utilização de contrato de parceria ou de arrendamento firmados com a finalidade de exploração de cultura de verão (a exemplo da soja).

Para compreender essa possibilidade da realização de contratos concomitantes sobre uma mesma área, é importante observar a natureza da posse desse imóvel agrário. No caso específico da parceria rural, deve se observar que a posse do imóvel agrário permanece sendo exercida em sua plenitude pelo parceiro-outorgante (proprietário), uma vez que tal modalidade confere ao parceiro-outorgado a posse apenas para os fins do uso especifico da exploração da atividade agrária definida no objeto da avença, sendo lícito aos contratantes disciplinar especificamente essa questão.

Desta forma, o contrato de parceria rural poderá permitir ou restringir (até mesmo em caso de omissão) a possibilidade de desenvolvimento de outra atividade agrária por parte dos parceiros. A posse pode ficar a cargo de cada um dos contratantes, isoladamente.

Como mencionado anteriormente, pela característica climática do Sul do país, onde as estações do ano são bem definidas, possibilitando as práticas agrícolas de verão e de inverno, é adotada no meio rural a nomenclatura de “ano fechado” (hipótese em que a posse integral fica com o arrendatário ou parceiro-outorgante, que podem exercer outro tipo de atividade, sem contraprestação ao dono da gleba) ou “ano aberto” (situação em que o proprietário, após o ciclo da cultura previsto no contrato pode destinar o uso a outra cultura ou atividade sem vinculação ao contrato tido como principal)[2].

[1] O contrato de pastoreio é uma modalidade atípica de contrato agrário com fins pecuários, que se realiza sem a observância dos prazos mínimos estabelecidos pelo art. 13, inc. II, alínea a, do Decreto nº 59.566/1966. Entende-se por contrato de pastoreio “o contrato pelo qual o explorador do imóvel rural (a qualquer título), denominado prestador de pastoreio, recebe os animais do tomador de pastoreio para guardar, cuidar e tratar, até o fim do prazo do contrato”, conforme definição desenvolvida por Roberto Bastos Fagundes Ghigino. De acordo com o referido, o pagamento pelo serviço prestado dar-se-á em valor pecuniário por cabeça de entregue ao prestado de pastoreio, o qual fica responsável pela guarda e manejo dos animais. GHIGINO, Roberto Bastos Fagundes. O contrato de pastoreio à luz do Direito Agrário. Monografia do Curso de Especialização em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio. Porto Alegre: Instituto Universal de Marketing em Agribusiness (I-UMA), 2016.

Trata-se de típica prática costumeira, que obedece aos usos e costumes locais[1]. Evidentemente, as duas hipóteses de uso costumeiro na vida rural dependem da negociação entre as partes porque há efeito prático sobre o preço, no caso do arrendamento, e na partilha dos resultados, no caso da parceria rural. Como lembra a doutrina de Ruy Cirne Lima, “o costume, por definição, abrange tanto o ‘secundum legem’, o ‘praeter legem’, como o ‘contra legem’”[2], submetendo-se às contingências de espaço, cuja marca é a criação de uma “regra provisória, insubstituível, talvez, porém, à falta de outra melhor[3].

Ainda, há a hipótese de exercício conjunto dessa posse agrária alheia à atividade exclusiva do contrato típico. Essa é outra possibilidade por conveniência negocial, respeitando o peso e a representatividade de cada contratante, já que na parceria rural, enquanto contrato de oneroso de natureza societária, o objetivo final é o “ganha-ganha”, ou seja, o lucro a ser alcançado mediante o resultado com a exploração da atividade agrária.

Em caso de omissão contratual, não incidindo sobre a área outra atividade objeto de algum contrato, naturalmente a posse é do proprietário (parceiro-outorgante), ainda que seja de forma indireta, sendo permitido a ele a livre exploração do seu imóvel, desde que não comprometa ou prejudique o parceiro-outorgado. Seguindo o exemplo anterior, é lícito ao proprietário de determinado imóvel agrário firmar contrato de parceria rural com a finalidade de exploração agrícola de cultura de verão (a exemplo das culturas de arroz e soja) e durante o período de entressafra utilizar a área para desenvolver atividade pecuária, seja com gado próprio ou firmando contrato de pastoreio rural com terceiros. Na hipótese, cumpre ao proprietário ter o cuidado com as recomendações técnicas acerca da taxa de lotação de animais, sob pena de causar danos à área da lavoura pela compactação do solo gerado pelo pisoteio excessivo dos animais.

Caso haja clandestinidade no uso da posse por parte de um dos parceiros, cabível indenização por perdas e danos, seja por interferência no objeto principal da parceria (um dos parceiros permite ingresso excessivo de animais por medida recomendada de campo), por ato atentatório à expectativa do bom resultado (em virtude do compartilhamento dos riscos da atividade); ou ainda, seja em razão do locupletamento ilícito. Em ambos os casos, é facultada a rescisão contratual por mudança de destinação da atividade e quebra da boa-fé contratual.

Em síntese, observamos que o uso do imóvel agrário pelo parceiro-outorgado é limitado ao tipo de atividade de exploração e destinação do imóvel, em razão de seu vínculo decorrer do seu trabalho. Nesse caso, em que pese seja possível a concomitância de outros contratos ou atividades sobre a mesma área no período entressafras, observadas as circunstâncias do caso concreto e os usos e costumes locais de determinadas regiões, é importante aos contratantes disciplinarem no momento da elaboração do contrato regras específicas acerca de tais práticas, a fim de evitar atos clandestinos que possam dar causa a uma quebra contratual ou, ainda, para evitar danos ao outro contratante decorrente do mal da gleba.