16 de setembro de 2020

Os 100 anos do patrono da aviação agrícola brasileira

Esta quarta-feira (16) marca o centenário de Clóvis Candiota, cuja história é relembrada com palavras do próprio homenageado durante o primeiro encontro aeroagrícola do País

Esta quarta-feira marca o centenário do nascimento do piloto e empresário Clóvis Gularte Candiota, patrono da Aviação Agrícola Brasileira. Candiota realizou a primeira operação aeroagrícola realizada no Brasil, em 19 de agosto de 1947, contra uma nuvem de gafanhotos no município gaúcho de Pelotas. Naquela tarde, ele pilotou um biplano Muniz M-9 do Aeroclube de Pelotas, juntamente com o agrônomo Antônio Leôncio de Andrade Fontelles, então chefe do Posto de Defesa Agrícola local, do Ministério da Agricultura. Fontelles operou uma espécie de polvilhadeira encomendada por ele de um funileiro local, que foi acoplada ao avião para lançar inseticida em pó sobre os insetos.

Candiota também operou com aviões Piper Cub J3 em sua empresa

A operação foi o ponto de virada no combate à praga, em um dos maiores ataques de gafanhotos já ocorridos no Brasil – entre os anos de 1946 e 1947. Candiota e Fontelles ainda se tornaram sócios na primeira empresa aeroagrícola do País, a Serviço Aéreo Nacional de Defesa Agrícola – Sanda. A empresa prestou serviços e combate a gafanhotos e outras pragas, para o governo gaúcho e produtores rurais. Já no final dos anos 50 Fontelles foi para o Rio de Janeiro e Candiota trocou a aviação pelo comércio e ações sociais. Clóvis Candiota faleceu em abril de 1976 e, em abril de 1989, tornou-se Patrono da Aviação Agrícola. Isso pelo Decreto-Lei 97.699, que também oficializou o 19 de agosto como Dia nacional da Aviação Agrícola  

EXPERIÊNCIA

Nascido em 16 de setembro de 1920, o piloto pelotense ingressou na aviação por influência da campanha Dê Asas para o Brasil, idealizada no Rio de Janeiro pelo jornalista Assis Chateaubriand. Iniciativa que, a partir de 1940, buscou patrocinadores e promoveu a doação de aviões a mais de 800 aeroclubes pelo País (alguns fundados a partir de então e outros já existentes). Entre eles, o de Pelotas.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Candiota pilotou na Patrulha Aérea de Vigilância da Costa, vigiando a barra de Rio Grande contra a possível presença de submarinos alemães. Assim, quando houve o episódio dos gafanhotos em 1947, ele já era o mais experiente piloto da região.

CURIOSIDADES REVELADAS

Em 1971, Candiota revelou (possivelmente pela primeira vez) diversos detalhes do cenário da época e curiosidades sobre o primeiro voo agrícola do País. Inclusive o fato de que ele e Fontelles inicialmente acharam que a operação havia dado errado. A tal ponto que já estavam esperando a zombaria de amigos e conhecidos. O que durou só até o dia seguinte, quando perceberam que os agricultores comemoravam a eliminação da praga. 

O relato foi durante a Primeira Reunião Anual dos Aplicadores Aéreos Brasileiros, ocorrida de 9 a 18 de julho daquele ano e promovida pelo Ministério da Agricultura, no Parque Anhembi, em São Paulo. Tudo dentro da 3ª Feira da Técnica Agrícola (Fetag) e estavam lá outros pioneiros, como Eduardo Araújo, Marcos Vilela, Orlando Bombini, Ada Rogato, e outros. O encontro foi coordenado pelo tenente-coronel aviador Marialdo Rodrigues Moreira – o homem que ajudou a organizar e oficializar, no âmbito legal e governamental, o setor aeroagrícola brasileiro.  

A própria presença de Candiota na feira, como convidado especial, ocorreu depois dele ter se manifestado contra o esquecimento de sua história. Em 1970, em uma matéria sobre o então projeto do avião agrícola Ipanema, o jornal Correio do Povo mencionou Ada Rogato como a primeira piloto agrícola no País (entre homens e mulheres), em 1948, no combate à broca-do-café em São Paulo. Já afastado da aviação agrícola e tocando a vida como comerciante e participando de ações comunitárias, o pelotense escreveu uma carta ao jornal, recordando os fatos de 1947 e apresentando documentação.

 Essa história ele também mencionou em sua fala no encontro aeroagrícola de 1971, que segue abaixo:

Não noticiaria estas breves palavras, sem antes agradecer às altas autoridades do Ministério da Agricultura, e, muito especialmente, ao Cel. Marialdo, a grata oportunidade que me deram, de recordar aqui, de modo informal, passagens inesquecíveis de minha mocidade, e, ainda mais, de me dirigir ao nobre povo de São Paulo e de outros Estados, que aqui acaso se encontrem.

Saúdo também, aos homens de imprensa, vanguardeiros do progresso, lembrando a figura personalíssima e inesquecível de Assis Chateaubriand, que tanto fez pela aviação civil em nosso país, na patriótica campanha “DÊ ASAS PARA O BRASIL” – que, a tal ponto, atingiu meu idealismo de jovem, que determinou o meu ingresso na aviação.

Dedicado inteiramente ao comércio, e aos compromissos de um chefe de família, quase avô, eu pensava, até bem pouco tempo que a fase da minha vida dedicada à aviação, estivesse para sempre sepultada e esquecida.

No ano passado, no entanto, um equívoco jornalístico sem importância, atribuía à insigne aviadora brasileira Ada Rogatto, a par de todas as suas conhecidas glórias, as primeiras tentativas de combate às pragas da agricultura, pelo emprego do avião. Isto levou-me a manifestar-me por carta, ao diretor do jornal, restituindo a verdade dos fatos.

Assim agi, não movido por qualquer desejo de notoriedade, nem com a intenção infantil de desmerecer a figura da grande dama de nossa aviação civil – mar porque achei que não poderia privar Pelotas, minha terra natal, do título de pioneirismo, que em verdade e por justiça lhe pertencia.

Daí, deve ter surgido a razão deste convite, que muito me desvanece dando-me a oportunidade de estar aqui agora, em tão agradável companhia.

Numa quarta-feira, 20 de agosto, do distante ano de 1947, o Diário Popular confirmava aos pelotenses, já alarmados, a dramática manchete. A manchete, em tipos negras e graúdos, dizia:

 “GAFANHOTOS SOBRE A CIDADE!”

A esta altura, há mais de dez dias, meus conterrâneos ouviam e liam notícias, oriundas de outros centros, dando a trajetória que os devastadores acrídeos, em nuvens imensas, haviam dotado.

Não restava a menor dúvida de que a Zona Sul seria o seu próximo pouso. Ao desânimo dos agricultores da região, seguiam-se o alarme e o desespero.

O que estes homens simples e intimidados não sabiam é que o Dr. Leôncio Fontelles, então chefe do Posto de Defesa Agrícola local, já arregimentava homens e reunia aparelhos manuais para enfrentar a terrível praga.

Os métodos comuns e tradicionais, no entanto, não dariam vencimento às incalculáveis legiões de insetos. Assim, ocorreu-lhe, numa tentativa desesperada e que iria ser no Brasil pioneira: o emprego do avião em defesa da agricultura.

Nesta época, eu era o piloto civil mais credenciado na região, tanto pelo número de horas de voo, como por ter tomado parte na Patrulha Aérea de Vigilância da Costa – durante a Segunda Guerra, na barra de Rio Grande.

Procurado pelo Dr. Fontelles, por ele desafiado, aderi ao projeto com entusiasmo. E, juntos, iniciamos os preparativos.

Tínhamos, em quantidade suficiente, o inseticida de que necessitávamos. Faltavam-nos, porém, em primeiro lugar UM AVIÃO e, como complemento indispensável, uma polvilhadeira adaptável ao avião, que nos permitisse controlar os jatos de inseticida sem maiores desperdícios.

 Por razões técnicas e óbvias, sabíamos que o Piper Cub J3 era, na ocasião, o aparelho mais indicado para o bom êxito da operação. O Aero Clube de Pelotas, no entanto, pôs à nossa disposição, sem outra alternativa, um biplano Muniz-9. Apesar de não acharmos este o avião mais indicado, aceitamos a oferta e partimos para a execução do plano.

Quanto à POLVILHADEIRA, na falta de maiores recursos, recorremos a um modesto funileiro que, rigorosamente dentro das medidas, foi executando o desenho que havíamos idealizado para caber no espaço disponível do avião (aparelho-revolvedor-portinhola comandadas).

Tudo pronto. Mas não pôde ser testado, visto que terminamos a instalação no avião com poucas horas de antecedência.

Tão logo começaram a baixar as primeiras nuvens de gafanhotos, iniciamos o nosso combate, sem que pudéssemos aquiladar ainda o seu grau de eficiência.

– Os primeiros resultados, meus amigos, pareceu desolador. Com o que sabíamos de aviação, e com o que não sabíamos de gafanhotos, pareceu-nos inútil a batalha. E já nos preparávamos para suportar as naturais zombarias dos amigos, quando a tragédia amainasse.

Ao procurarmos os resultados da tarefa, constatávamos que os terríveis insetos, aparentemente, não tinham tomado sequer conhecimento do nosso esforço.

Mas, já a esta altura, o inseticida começara a dobrar o inimigo – e, no dia seguinte, a Região despertaria com novas esperanças.

Moradores da Zona Sul procuravam os jornais para narrar, com emoção, O BOM ÊXITO DA EMPREITADA. As nuvens, que antes se faziam escurecer a luz do sol, cobriam os campos e valetas, formando um escuro e imenso tapete.

O resto do sensacionalismo, perdoem-me os jornalistas acaso presentes, correu por conta da imprensa…

O governo do Estado do Rio Grande do Sul, através de seu secretário de Agricultura, o saudoso Dr. Balbino Mascarenhas, não demorou em nos convocar. E, depois de rápido entendimento, estava fundado o SANDA, ou seja, o Serviço Aéreo Nacional de Defesa Agrícola, a primeira empresa do gênero criada no País. Operava com dois aviões Piper Cub J3, adquiridos, por agradável coincidência, nesta bela Capital Bandeirante.

Já neste ponto, a obra simples e rudimentar do funileiro anônimo fora substituída por polvilhadeiras tecnicamente adequadas, construídas pela empresa gaúcha Steigleder, sobre plantas conseguidas na América do Norte.

A partir de então, não foi difícil debelar, uma a uma, as nuvens de gafanhotos que sucessivamente ainda nos desafiavam. E, em poucos meses, a paz e a segurança voltaram aos campos do Rio Grande.

A técnica aperfeiçoou os métodos. O Governo da Revolução, na sua obra de construção e saneamento, que não conhece obstáculos, incentivou de maneira decisiva os trabalhos da aviação agrícola. Fazendo com que a improvisação não mais encontre lugar na proteção aos que cultivam a terra.

Assim, na perspectiva do tempo, nosso trabalho talvez haja perdido a expressão. Nunca, porém – permitam-me a franqueza, se considerarmos que naquela época nós fizemos o que estava ao nosso alcance.

Muito obrigado.

Clóvis Gularte Candiota – julho de 1971

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