19 de agosto de 2021

Os 74 anos da força aérea agrícola brasileira

Dia Nacional da Aviação Agrícola, o 19 de agosto marca o início, a partir de uma operação contra gafanhotos, de uma ferramenta de hoje inseparável da segurança alimentar e sustentabilidade no País

O dia 19 de agosto de 2021 marca o 74º aniversário da criação da aviação agrícola brasileira. Por aqui, o setor surgiu em uma operação de combate a gafanhotos em uma tarde de terça-feira, em 1947, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. O primeiro voo começou a ser planejado dias antes, pelo engenheiro agrônomo Leôncio de Andrade Fontelles, em parceria com o piloto Clóvis Gularte Candiota. O motivo era uma praga de gafanhotos, que já havia marcado presença em 1946 entre as fronteiras da Argentina com o Uruguai e o sul gaúcho e retornou no ano seguinte. Naquele 1947, Fontelles era o chefe do Posto de Defesa Agrícola do Ministério da Agricultura em Pelotas. Com o avanço dos gafanhotos, ele já havia pedido às diretorias dos aeroclubes local, de Bagé e de Jaguarão para que fizessem voos de reconhecimento para localização das nuvens e locais de desova em terra.

Candiota no Muniz M9 do primeiro voo agrícola do País

Porém, o combate em solo já se mostrava ineficiente e os insetos se deslocavam rápido, já perto de Pelotas e dizimando lavouras pela região. Fontelles então resolveu apostar na estratégia do combate aéreo, em parceria com o aeroclube pelotense. O agrônomo encomendou de um funileiro local uma espécie de polvilhadeira, a partir de desenhos conseguidos por ele provavelmente de publicações estrangeiras. Com a ajuda de Candiota, o equipamento foi acoplado ao avião biplano M-9 Muniz, prefixo PP-GAP, que era usado para a instrução e pilotos. Fontelles e Candiota ficaram de sobreaviso até a tarde de 19 de agosto, quando, pouco depois das 16 horas, veio o alerta de uma nuvem de insetos em Pelotas. Os dois decolaram para a operação e foi aí que o jogo começou a virar na luta contra a praga.

Fontelles ainda se tornou sócio da primeira empresa aeroagrícola do País, fundada pelos dois pioneiros logo após o sucesso do combate aos gafanhotos

As operações ainda seguiram nas semanas seguintes para proteger os agricultores dos insetos – a praga de gafanhotos entre 1946 e 47 foi uma das maiores da história do País. Pouco depois, apostando na eficiência da nova ferramenta, Candiota e Fontelles ainda se tornaram sócios na primeira empresa aeroagrícola do País, a Serviço Aéreo Nacional de Defesa Agrícola – Sanda. A empresa prestou serviços e combate a gafanhotos e outras pragas para o governo gaúcho e produtores rurais. Ela durou até o final dos anos 50, quando Fontelles foi para o Rio de Janeiro e Candiota trocou a aviação pelo comércio e ações sociais. Clóvis Candiota faleceu em abril de 1976 e, em abril de 1989, tornou-se Patrono da Aviação Agrícola. Isso pelo Decreto-Lei 97.699, que também oficializou o 19 de agosto como Dia nacional da Aviação Agrícola.

Nascido em 16 de setembro de 1920, Clóvis Candiota ingressou na aviação por influência da campanha Dê Asas para o Brasil, idealizada no Rio de Janeiro pelo jornalista Assis Chateaubriand. Iniciativa que, a partir de 1940, buscou patrocinadores e promoveu a doação de aviões a mais de 800 aeroclubes pelo País (alguns fundados a partir de então e outros já existentes). Durante a Segunda Guerra Mundial, Candiota pilotou na Patrulha Aérea de Vigilância da Costa, vigiando a barra de Rio Grande contra a possível presença de submarinos alemães. Assim, quando houve o episódio dos gafanhotos em 1947, ele já era o mais experiente piloto da região.

LEMBRANÇA

Curiosamente, apesar de amplamente noticiada (e festejada) pela imprensa local, o episódio daquela operação caiu no esquecimento. Até 1971, quando Candiota revelou (possivelmente pela primeira vez) diversos detalhes do cenário da época e curiosidades sobre o primeiro voo agrícola do País. Inclusive o fato de que ele e Fontelles inicialmente acharam que a missão havia fracassado. A tal ponto que os dois já esperavam pela zombaria de amigos e conhecidos. O que durou só até o dia seguinte, quando perceberam que os agricultores comemoravam a eliminação da praga.

Segundo a filha de Candiota, o período de esquecimento provavelmente foi facilitado até pela modéstia do pai. “Eu tenho muito orgulho de ser filha de uma pessoa que, tudo o que fez na vida, amou muito. Ele era alucinado por  aviação. E esse gesto de pioneirismo na realidade foi algo que ele não considerou assim”, comentou, em 2016, Íris Helena Martins Candiota. A hoje auditora federal aposentada falou, naquele ano, durante uma homenagem do Sindag ao pioneiro. Foi quando também agradeceu o carinho que o setor tem dedicado a seu pai durante todos este anos – confira o vídeo no final do texto.

RELATO

Já o relato de Clóvis Candiota em 1971 foi durante a Primeira Reunião Anual dos Aplicadores Aéreos Brasileiros, ocorrida de 9 a 18 de julho daquele ano e promovida pelo Ministério da Agricultura, no Parque Anhembi, em São Paulo. Tudo dentro da 3ª Feira da Técnica Agrícola (Fetag) e estavam lá outros pioneiros, como Eduardo Cordeiro de Araújo (hoje consultor do Sindag), Marcos Vilela, Orlando Bombini, Ada Leda Rogato, e outros. O encontro foi coordenado pelo tenente-coronel aviador Marialdo Rodrigues Moreira – o homem que ajudou a organizar e oficializar, no âmbito legal e governamental, o setor aeroagrícola brasileiro

A própria presença de Candiota na feira, como convidado especial, ocorreu depois dele ter se manifestado contra o esquecimento de sua história. Em 1970, em uma matéria sobre o então projeto do avião agrícola Ipanema, o jornal Correio do Povo (de Porto Alegre) mencionou Ada Rogato como a primeira piloto agrícola no País (entre homens e mulheres), em 1948, no combate à broca-do-café em São Paulo. Já afastado da aviação agrícola e tocando a vida como comerciante e participando de ações comunitárias, o pelotense escreveu uma carta ao jornal, recordando os fatos de 1947 e apresentando documentação.

História que ele também narrou em sua fala no encontro aeroagrícola de 1971, que segue abaixo:

Não noticiaria estas breves palavras, sem antes agradecer às altas autoridades do Ministério da Agricultura, e, muito especialmente, ao Cel. Marialdo, a grata oportunidade que me deram, de recordar aqui, de modo informal, passagens inesquecíveis de minha mocidade, e, ainda mais, de me dirigir ao nobre povo de São Paulo e de outros Estados, que aqui acaso se encontrem.

Saúdo também, aos homens de imprensa, vanguardeiros do progresso, lembrando a figura personalíssima e inesquecível de Assis Chateaubriand, que tanto fez pela aviação civil em nosso país, na patriótica campanha “DÊ ASAS PARA O BRASIL” – que, a tal ponto, atingiu meu idealismo de jovem, que determinou o meu ingresso na aviação.

Dedicado inteiramente ao comércio, e aos compromissos de um chefe de família, quase avô, eu pensava, até bem pouco tempo que a fase da minha vida dedicada à aviação, estivesse para sempre sepultada e esquecida.

No ano passado, no entanto, um equívoco jornalístico sem importância, atribuía à insigne aviadora brasileira Ada Rogato, a par de todas as suas conhecidas glórias, as primeiras tentativas de combate às pragas da agricultura, pelo emprego do avião. Isto levou-me a manifestar-me por carta, ao diretor do jornal, restituindo a verdade dos fatos.

Assim agi, não movido por qualquer desejo de notoriedade, nem com a intenção infantil de desmerecer a figura da grande dama de nossa aviação civil – mar porque achei que não poderia privar Pelotas, minha terra natal, do título de pioneirismo, que em verdade e por justiça lhe pertencia.

Daí, deve ter surgido a razão deste convite, que muito me desvanece dando-me a oportunidade de estar aqui agora, em tão agradável companhia.

Numa quarta-feira, 20 de agosto, do distante ano de 1947, o Diário Popular confirmava aos pelotenses, já alarmados, a dramática manchete. A manchete, em tipos negras e graúdos, dizia:  “GAFANHOTOS SOBRE A CIDADE!”

A esta altura, há mais de dez dias, meus conterrâneos ouviam e liam notícias, oriundas de outros centros, dando a trajetória que os devastadores acrídeos, em nuvens imensas, haviam dotado.

Não restava a menor dúvida de que a Zona Sul seria o seu próximo pouso. Ao desânimo dos agricultores da região, seguiam-se o alarme e o desespero.

O que estes homens simples e intimidados não sabiam é que o Dr. Leôncio Fontelles, então chefe do Posto de Defesa Agrícola local, já arregimentava homens e reunia aparelhos manuais para enfrentar a terrível praga.

Os métodos comuns e tradicionais, no entanto, não dariam vencimento às incalculáveis legiões de insetos. Assim, ocorreu-lhe, numa tentativa desesperada e que iria ser no Brasil pioneira: o emprego do avião em defesa da agricultura.

Nesta época, eu era o piloto civil mais credenciado na região, tanto pelo número de horas de voo, como por ter tomado parte na Patrulha Aérea de Vigilância da Costa – durante a Segunda Guerra, na barra de Rio Grande.

Procurado pelo Dr. Fontelles, por ele desafiado, aderi ao projeto com entusiasmo. E, juntos, iniciamos os preparativos.

Tínhamos, em quantidade suficiente, o inseticida de que necessitávamos. Faltavam-nos, porém, em primeiro lugar UM AVIÃO e, como complemento indispensável, uma polvilhadeira adaptável ao avião, que nos permitisse controlar os jatos de inseticida sem maiores desperdícios.

 Por razões técnicas e óbvias, sabíamos que o Piper Cub J3 era, na ocasião, o aparelho mais indicado para o bom êxito da operação. O Aero Clube de Pelotas, no entanto, pôs à nossa disposição, sem outra alternativa, um biplano Muniz-9. Apesar de não acharmos este o avião mais indicado, aceitamos a oferta e partimos para a execução do plano.

Quanto à POLVILHADEIRA, na falta de maiores recursos, recorremos a um modesto funileiro que, rigorosamente dentro das medidas, foi executando o desenho que havíamos idealizado para caber no espaço disponível do avião (aparelho-revolvedor-portinhola comandadas).

Tudo pronto. Mas não pôde ser testado, visto que terminamos a instalação no avião com poucas horas de antecedência.

Tão logo começaram a baixar as primeiras nuvens de gafanhotos, iniciamos o nosso combate, sem que pudéssemos aquilatar ainda o seu grau de eficiência.

– Os primeiros resultados, meus amigos, pareceu desolador. Com o que sabíamos de aviação, e com o que não sabíamos de gafanhotos, pareceu-nos inútil a batalha. E já nos preparávamos para suportar as naturais zombarias dos amigos, quando a tragédia amainasse.

Ao procurarmos os resultados da tarefa, constatávamos que os terríveis insetos, aparentemente, não tinham tomado sequer conhecimento do nosso esforço.

Mas, já a esta altura, o inseticida começara a dobrar o inimigo – e, no dia seguinte, a Região despertaria com novas esperanças.

Moradores da Zona Sul procuravam os jornais para narrar, com emoção, O BOM ÊXITO DA EMPREITADA. As nuvens, que antes se faziam escurecer a luz do sol, cobriam os campos e valetas, formando um escuro e imenso tapete.

O resto do sensacionalismo, perdoem-me os jornalistas acaso presentes, correu por conta da imprensa…

O governo do Estado do Rio Grande do Sul, através de seu secretário de Agricultura, o saudoso Dr. Balbino Mascarenhas, não demorou em nos convocar. E, depois de rápido entendimento, estava fundado o SANDA, ou seja, o Serviço Aéreo Nacional de Defesa Agrícola, a primeira empresa do gênero criada no País. Operava com dois aviões Piper Cub J3, adquiridos, por agradável coincidência, nesta bela Capital Bandeirante.

Já neste ponto, a obra simples e rudimentar do funileiro anônimo fora substituída por polvilhadeiras tecnicamente adequadas, construídas pela empresa gaúcha Steigleder, sobre plantas conseguidas na América do Norte.

A partir de então, não foi difícil debelar, uma a uma, as nuvens de gafanhotos que sucessivamente ainda nos desafiavam. E, em poucos meses, a paz e a segurança voltaram aos campos do Rio Grande.

A técnica aperfeiçoou os métodos. O Governo da Revolução, na sua obra de construção e saneamento, que não conhece obstáculos, incentivou de maneira decisiva os trabalhos da aviação agrícola. Fazendo com que a improvisação não mais encontre lugar na proteção aos que cultivam a terra.

Assim, na perspectiva do tempo, nosso trabalho talvez haja perdido a expressão. Nunca, porém – permitam-me a franqueza, se considerarmos que naquela época nós fizemos o que estava ao nosso alcance.

Muito obrigado.

Clóvis Gularte Candiota – julho de 1971

 

Confira o vídeo com a fala de Íris Candiota sobre o pai, durante homenagem promovida pelo Sindag em Pelotas, em 2016:

 

 

 

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