20 de novembro de 2021

Reportagem causa indignação por alimentar estereótipo contra a aviação

Matéria da Agência Pública sobre desmatamento na Amazônia manipula fotos, mistura dados e generaliza acusação contra uso de aviões para derrubar árvores

Uma reportagem publicada nesta semana pela Agência Pública causou indignação no setor aeroagrícola, devido à manipulação feita em uma foto de avião em lavoura, para fazer parecer que ele estava pulverizando a floresta. A matéria intitulada “Fazendeiros jogam agrotóxico sobre a Amazônia para acelerar desmatamento” deixa dúvidas ainda sobre até que ponto a figura da aviação foi vitaminada no próprio texto da narrativa, para dar mais impacto à reportagem. A notícia, na verdade é sobre R$ 72 milhões em multas sobre desmatamento (a maior parte na Amazônia) e por uso irregular de agrotóxicos entre 2010 e 2020, que deixaram de ser pagas no País nos últimos 10 anos. As autuações foram aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.

A foto principal chegou a ser trocada na página, depois da repercussão negativa junto a entidades e em redes sociais. A narrativa potencializada aparece logo no início do texto, que abre falando de um caso no Mato Grosso, em 2018, onde um desmatamento havia sido detectado por satélite em área de floresta amazônica e, somente oito meses depois, “quando o estrago já estava feito” – segundo a própria matéria, a fiscalização do Ibama se dirigiu ao local. Foi quando, segundo a reportagem, os fiscais se depararam com a clareira aberta, um avião, sementes de pastagem e os herbicidas glifosato e 2,4-D. Além de um inseticida e herbicida com aplicação proibida por avião. Segundo a matéria, os agentes teriam autuado o fazendeiro em R$ 52 milhões.

“Temos aí duas situações distintas apontada pelos fiscais: o crime da derrubada da mata e a presença dos agrotóxicos, junto com sementes para uma pastagem que estaria sendo preparada, além do avião. Mas fica claro que a clareira tinha sido aberta há meses”, pondera o diretor-executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) Gabriel Colle.  “A aeronave poderia estar aplicando os produtos contra a vegetação rasteira para preparar a área para a pastagem ou mesmo estar semeando a pastagem. Se houve irregularidade, a lei é clara nesses casos e tem o nosso apoio. Mas nos preocupa a atitude de inflar artificialmente uma bandeira contra a aviação”, argumenta.

ENQUADRAMENTO: manipulação feita na foto foi apontada por páginas como a Conhecimento Agro

Porém, segundo os dados abertos das autuações do Ibama, na fiscalização de 2018 o proprietário da área foi autuado, na verdade, em R$ 500,5 mil pelo desmatamento e por fazer funcionar sem licenciamento atividade potencialmente poluidora – no caso, a operação com agrotóxicos constatada na visita dos fiscais. A multa de R$ 52 milhões mencionadas na reportagem realmente existe no sistema do Ibama contra o mesmo produtor. O valor representa pouco mais de 70% das multas não pagas, mas refere-se a outra fiscalização, ocorrida em 2020.

O esforço da matéria para ligar o avião ao desmatamento também recorre a uma alegoria usada muitas vezes para vincular a ferramenta a agrotóxicos, ao comparar o uso do 2,4-D à aplicação de agente laranja na Guerra do Vietnã (nos anos 60 e 70). Isso porque, naquela guerra, era a aviação norte-americana que aplicava (com aviões miliares) o produto para desfolhar a floresta e expor os soldados inimigos. Só que o herbicida usado no Brasil era um de três componentes químicos na fórmula do agente laranja. “Na prática, acaba sendo um desserviço ao debate, porque dá a falsa ideia de que a aviação derruba árvores e é só proibir a aviação que o desmatamento ou mesmo a aplicação de agrotóxicos acaba”, lamenta o presidente do Sindag, Thiago Magalhães Silva.

FOTO DA NASA

O foco no estereótipo acaba sendo comprovado pela segunda imagem usada na matéria. Com a legenda “Nos últimos 10 anos, cerca de 30 mil hectares de vegetação nativa foram envenenados por agrotóxicos”, trata-se, na verdade, de uma a foto feita em 2010 pela Nasa, a agência espacial norte-americana. A imagem é da seca que ocorreu naquele ano na Amazônia e mostra uma linha de árvores danificadas e mortas devido a um incêndio (confira AQUI). Apesar das letras (bem) pequenas dizendo se tratar de uma mensagem meramente ilustrativa, com certeza a legenda faz o leitor entender se tratar do fato de agora.

Uma ironia, considerando-se que desde a década de 1990 a própria aviação agrícola vem sendo contatada pelo Ibama e pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio) para proteger a florestas nas temporadas anuais de incêndios. Aliás, mesmo o portal de notícia tendo tido o cuidado de colocar em letras pequenas “imagem meramente ilustrativa” no canto inferior da foto, a legenda (bem maior) que explica a imagem traz: “Nos últimos 10 anos, cerca de 30 mil hectares de vegetação nativa foram envenenados por agrotóxicos”.

“Reportagens sérias, provocativas e críticas são necessárias. Ainda mais diante de um tema em que todos temos nossas responsabilidades. Porém, é perigoso se avaliar um cenário a partir de estereótipos, preconceitos ou interesses que dificultam separar o fato do mito. Isso torna o debate raso e, não raro, deliberadamente direcionado”, lamenta Gabriel Colle.

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