Esta eleição é o fim de um ciclo
Entrevista de Fernando Schüler à Revista “Isto é Dinheiro”
O cientista político Fernando Schüler, professor do Insper, afirma que a posição antissistema é o que faz essas eleições serem diferentes de todas as outras no Brasil. O candidato Jair Bolsonaro (PSL) foi quem melhor se apropriou da insatisfação da população com o sistema. Por isso, a tentativa de o PSDB propor uma discussão sobre reformas durante a campanha soou fora de sintonia para o eleitor. Para Schüler, os grandes vencedores são os partidos Novo e Psol, que se apresentam como novas opções à direita e à esquerda da política. Ele ressalta, também, que o PT sai vitorioso, tanto pela ida de Fernando Haddad para o 2o turno na disputa à Presidência como pela confirmação da maior bancada na Câmara – mesmo depois do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e dos resultados ruins das eleições municipais de 2016. Mas, para o cientista político, o debate que precisa começar é sobre o voto facultativo. “O Brasil está maduro para isso”, diz ele
DINHEIRO – Qual é a lição que se pode tirar destas eleições?
FERNANDO SCHÜLER – É uma eleição inteiramente diferente de todas as outras. Até 2014, vivemos um ciclo da política, marcado pela disputa entre variantes da social democracia brasileira. Dilma (Rousseff, PT) e Aécio (Neves, PSDB) tinham divergências de natureza política e econômica, mas não divergência de natureza cultural. Isto é curioso. Gastamos vinte anos acreditando que o mundo se dividia entre esquerda e direita e que Fernando Henrique era um perigoso neoliberal. Agora descobrimos que o mundo é mais complicado. Bolsonaro representa uma ruptura desse ciclo histórico. Ele introduz um tipo de cisão no terreno da guerra cultural. Temas morais invadem a política. A obsessão com as identidades, de um lado, e a reação conservadora, de outro. No fim todos perdem, pois este é um debate impossível. Ele vai muito além dos limites possíveis da política.
DINHEIRO – Isso significa que o Bolsonaro é a novidade na política nacional?
SCHÜLER – Evidente. De certo modo fomos globalizados: temos o nosso populista conservador. Um tipo de conservadorismo popular, de costumes, que representa uma tradução brasileira da ideia de “lei e ordem”. Nada a ver, por óbvio, com a grande tradição conservadora anglo-saxônica. Nosso conservadorismo não trata de Burke, mas do pastor Malafaia. Podemos não gostar disso, mas é tudo legítimo. Expressa o pensamento de parcela relevante da sociedade, que andava dispersa por aí. Em quem estas pessoas votavam, até 2014? Em Aécio, Dilma, ou na Rede, de Marina Silva? A democracia vai criando suas próprias soluções. Eu não gosto do vezo populista, mas o que isto importa? O Brasil foi pautado, ao longo das gestões do PT, por uma retórica excludente, do “nós contra eles”. O “nunca antes neste país”. É evidente que isto criaria um efeito reativo. Demorou, mas aconteceu. Custa caro, para a democracia, apostar o tempo todo na lógica do dissenso. Bolsonaro é o produto extremo de uma sociedade que já vem polarizada há muito tempo. É evidente que a crise ética, política e econômica que vivemos funcionou como o estopim do processo. Terreno fértil para um líder populista e antissistema. Agora, lide-se com ele.
SCHÜLER – O Bolsonaro não criou esse cenário, ele é seu resultado. Ele verbalizou e deu viabilidade política a um descontentamento difuso na sociedade com o sistema político. Não é simples explicar a emergência de um fenômeno populista. Em regra, combina-se crise econômica, exclusão (por vezes cultural) de amplos setores, polarização e instabilidade política a nova lógica da democracia digital. O líder populista fala diretamente com as pessoas, dispensando os partidos e instituições tradicionais de mediação. É o que faz Bolsonaro: ele não está interessado em alianças ou no dinheiro do fundo público de campanhas. Usa a internet e seu movimento se propaga de modo caótico, nas redes sociais. Daí a sua força.
DINHEIRO – A democracia está em risco por conta disso?
DINHEIRO – As posições do Bolsonaro não são radicais?
SCHÜLER – É evidente que o Bolsonaro tem um traço autoritário e alimenta teses insustentáveis, como o elogio a torturadores. A esquerda fazia isso com o elogio reiterado, que acontece até hoje, à ditadura castrista, em Cuba, e o apoio explícito ao autoritarismo na Venezuela? É curioso como nós “normalizamos” essas coisas. Nós cultivamos uma curiosa indignação seletiva, que chegou a um esgotamento, nos dias de hoje. A forma de lidar com essas coisas é dobrar a aposta na democracia. Tenho dito que não adiante pregar o diálogo e a moderação e, ato seguinte, chamar o adversário de fascista. O pior caminho para a nossa democracia é excluir as novas formas de representação e de setores importantes para a sociedade brasileira, que eventualmente estiveram fora do poder, mas agora querem fazer parte do jogo.
“O Partido Novo é um dos grandes vencedores ao apostar em uma parcela importante da classe média, que historicamente votou no PSDB” – João Amoêdo, do Novo, ficou em quinto lugar em sua primeira disputa eleitoral
DINHEIRO – Quais são os outros exemplos de excluídos?
DINHEIRO – As redes sociais vão ser um marco importante na análise dessas eleições?
SCHÜLER – Estas foram as eleições do cidadão comum, dos sem-retórica. O tipo que não se enquadra e mesmo reage a qualquer disciplinamento ideológico. Ele ganhou poder com a tecnologia, e vem produzindo um enorme barulho. Em geral, a elite intelectual não o suporta. Umberto Eco deu perfeitamente o tom: é o idiota da aldeia. Poucas vezes eu vi em uma democracia um divórcio tão grande entre o pensamento do homem comum e o pensamento da elite política intelectual. É uma espécie de incompreensão. Isso vem de um crescimento do politicamente correto, das restrições ao humor, à imposição de códigos identitários e a obediência a uma certa estética. Bolsonaro, em grande medida, se fez a representação do tipo que cansou da vigilância cultural e da fraseologia treinada dos políticos. A autenticidade, que por vezes pode se expressar como vulgaridade, adquiriu que um valor na política. O ponto é que um erro tomar cada frase de mau gosto pelo seu valor de face. É preciso respeitar a diferença cultural, mesmo que ela se manifeste do lado que não suportamos.
DINHEIRO – A escolha é muito mais antissistema do que pela renovação?
DINHEIRO – Tem espaço para essa discussão no segundo turno?
SCHÜLER – Deveria ter, mas temo que não haverá. O PT diz que agora quer fazer uma discussão programática, mas no fundo sustenta toda a sua campanha partindo dessa retórica de fim de mundo, do abismo, do “ele, não” e da ameaça “fascista”. Neste plano, como é possível fazer debate de ideias e programas? Do lado do Bolsonaro é a mesma coisa. Em vez de discussão das reformas da previdência ou política, ele joga contra. Recua de suas propostas de privatização, derruba a reforma da previdência no Congresso e silencia seu principal conselheiro econômico. Não estou aqui sugerindo que isto poderia ser diferente. É apenas uma constatação. Gastaremos mais três semanas decisivas em assuntos irrelevantes, ao invés de discutir o que realmente deverá pautar o País a partir de janeiro.
DINHEIRO – Ninguém vai saber qual será o País que nasce a partir de 1º de janeiro de 2019?
DINHEIRO – Há perdedores nesta eleição?
SCHÜLER – Não creio que a derrota nessa eleição pode ser mensurada em esquerda ou direita. Não foi disso que essa eleição tratou. O PT conseguiu uma recuperação monumental depois do processo de impeachment. Passou por uma situação dramática e conseguiu chegar ao segundo turno. A estratégia de sustentar a candidatura do Lula até a última possibilidade jurídica produziu essa transferência que levou o Haddad ao segundo turno. Portanto, acertou a estratégia. O partido conseguiu eleger a maior bancada na câmara dos deputados, em meio a uma situação em que seus adversários históricos, como o PSDB, encolheram. Essa eleição não é uma derrota da esquerda, é o fim de um ciclo.
DINHEIRO – Que ciclo é esse?
DINHEIRO – A não eleição de caciques políticos e de vários nomes tradicionais indica um amadurecimento da política?
SCHÜLER – Isso mostra as forças da democracia. É natural que haja um ciclo de renovação. Os americanos obedecem à regra de que um presidente fica dois mandatos e depois se retira da vida pública. É preciso oxigenar a democracia. Nestas eleições, o eleitor se encarregou de fazer o trabalho. A renovação atingiu diversos partidos e não se localiza em um ou outro espectro ideológico. O que precisamos agora é aprofundar a reforma política. Por uma razão: são as instituições que modelam o comportamento político, no longo prazo. Não adianta imaginar que irá surgir, a cada geração, uma liderança de qualidade, sem os incentivos devidos. Precisamos apostar no voto distrital misto, na retomada da reforma do estado, no fim dos instrumentos patrimoniais, como as emendas parlamentares e a profusão de cargos políticos no governo. Não sei como o País irá avançar nestas questões, mas aposto que o caminho são reformas graduais, como tivemos com a introdução recente da cláusula de barreira.
DINHEIRO – Os riscos à democracia, então, estão descartados?
SCHÜLER – O Brasil assistiu a uma explosão democrática, ao menos desde 2013. O processo de impeachment foi feito à base de milhões de pessoas nas ruas, goste-se ou não de seu resultado. Não tenho dúvidas em dizer que vivemos um tempo de exuberância, ainda que de profundo mal-estar na democracia. O sistema é hoje mais barulhento e o debate público mais polarizado. Há dezenas de milhões de pessoas falando sem parar, nas redes sociais. Três décadas atrás havia uma elite de milhares de pessoas com o monopólio da palavra. O barulho, a estridência e a permanente sensação de instabilidade são o novo normal da democracia. Quem quiser lidar com ela, vai ter que se acostumar.