19 de agosto de 2023
AvAg 76 anos: O nascimento no Brasil e como está o setor hoje
Na última reportagem da série de aniversário do setor, a história de como a segunda maior aviação agrícola do mundo nasceu no enfretamento a uma das maiores emergências fitossanitárias do País
A década de 1940 havia começado com o mundo em guerra (que terminou em 45) e o Rio Grande do Sul enfrentando um super El Niño em 1941, com algumas das mais devastadoras enchentes já ocorrias no Estado. Isso seguido de uma seca em 1942 e 1943 e de um clima que teve alterações sérias até quase o fim da década. A tal ponto que as correntes de ar quente pela América do Sul em 1946 e 47 favoreceram a chegada até o Rio Grande do Sul das migrações de gafanhotos que desde o século 19 eram vigiadas no território argentino. E que ainda hoje partem da tríplice fronteira entre nosso vizinho com o Paraguai e Colômbia.
Os insetos, que haviam chegado com destruição ao Rio Grande do Sul em 1946, diversas vezes cruzaram o Paralelo 28 no território argentino no ano seguinte, colocando repetidas vezes em alerta o lado de cá da fronteira. Em diversas ocasiões já no primeiro semestre do ano a imprensa registrou a chegadas de insetos até na região central gaúcha, além de invasões na altura de Santa Catarina. Como em 20 de maio daquele ano, quando o jornal O Dia, de Porto Alegre, publicou notícia falando de uma nuvem de insetos que havia ingressado no Estado por Uruguaiana, com “uma extensão de 30 quilômetros de frente por 20 de fundo” – veja abaixo.
Aliás, tudo isso tendo como pano de fundo debates entre autoridades locais e o Estado, compra de pulverizadores terrestres e lança-chamas (para combater os insetos em seus pontos de descanso) e a importação, da Holanda, de produto para “enfrentar as terríveis nuvens de acrídeos”. O problema foi tão sério que se chegou a cogitar a criação, no Brasil, de um sistema parecido com o Programa de Gafanhotos do Serviço Nacional de Sanidade Agroalimentar (Senasa), da Argentina, que existe desde 1891. E a situação estava séria também para nossos vizinhos: em julho daquele ano, o mesmo jornal O Dia noticiava que a Argentina (que já combatia gafanhotos com aviões desde 1926) estava adquirindo também 10 helicópteros dos Estados Unidos pra colocar na campanha.
O que, em Pelotas, a situação motivou o então chefe do posto local do Ministério da Agricultura, o agrônomo Antônio Leôncio de Andrade Fontelles, a encontrar uma maneira de partir para o combate aéreo. Até porque ele já havia recebido do governo federal 20 polvilhadeiras manuais e duas motorizadas, para aplicar inseticida (que na época era em pó). Além de um lança-chamas, que também era ferramenta comum na época para atacar os insetos enquanto estavam no solo – especialmente entre o final da tarde e o começo da noite. Então, some-se aí a dificuldade de correr contra o tempo para localizar o local de pouso dos insetos e deslocar equipes, em uma época de dificuldades de comunicação e locomoção.
Tendo conversado sobre sua ideia no Aeroclube de Pelotas com o piloto Clóvis Gularte Candiota, Fontelles conseguiu uma imagem de um equipamento de pulverização para se acoplado em avião (em uma publicação estrangeira). O agrônomo e o piloto ajustaram o desenho às dimensões do Muniz M-9 designado pelo Aeroclube para a missão e Fontelles fez a encomenda em uma funilaria local. Depois, foi ajustar ao avião, preparar o produto e esperar os gafanhotos virem. Já que os dois contavam com relatos de outros aeroclubes da região de fronteira, onde eram feitos voos (muitos a pedido de Fontelles) para saber do deslocamento dos insetos.
Operação que inaugurou o
setor no País ocorreu no final da tarde
E os insetos vieram: na Argentina cruzado do Chaco para Santa Fé e entrado na província de Corientes. Ali, costeando a fronteira gaúcha para entrar no Uruguai. E rumo leste para então fazer meia volta e, finalmente (após cerca de uma semana nesse deslocamento), uma nuvem entrou no território gaúcho pelo sul.
No dia 19 de agosto, há 76 anos, era pouco depois das quatro horas da tarde, quando o biplano Muniz M-9 prefixo PP-GBF, do Aeroclube de Pelotas, começou o roncar seu motor Havilland Gipsy Six de 200 hp. No comando estava Clóvis Candiota era, aos 26 anos de idade, um dos mais experientes pilotos da região – “filho” da campanha Dê Asas ao Brasil, que equipou aeroclubes nos anos 40 e veterano dos voos de patrulha na costa gaúcha na Segunda Guerra Mundial. Junto com ele, o agrônomo Leôncio Fontelles se preparava para colocar em funcionamento “e engenhoca” (como Candiota chamava o equipamento de seu companheiro de missão.
A nuvem de gafanhotos sobre a qual haviam recebido o alerta acabou interceptada ao final da tarde, na altura do atual bairro Areal – na zona leste da cidade. Os insetos estavam se assentando onde então era uma área rural e foram aplicadas três cargas até o final da tarde, em áreas também nas regiões de Três Vendas e Fragata.
Feita a aplicação, Candiota e Fontelles não conseguiram confirmar imediatamente se a operação havia dado certo. “Com o que sabíamos de aviação, e com o que não sabíamos de gafanhotos, pareceu-nos inútil a batalha. E já nos preparávamos para suportar as naturais zombarias dos amigos, quando a tragédia amainasse”, chegou a contar o piloto, em um relato feito 24 anos depois, no primeiro evento de aviação agrícola realizado no Brasil – promovido em São Paulo, pelo Ministério da Agricultura.
DESENVOLVIMENTO
As operações ainda seguiram nas semanas seguintes para proteger os agricultores dos insetos – a praga de gafanhotos entre 1946 e 47 foi uma das maiores da história do País. Pouco depois, apostando na eficiência da nova ferramenta, Candiota e Fontelles ainda se tornaram sócios na primeira empresa aeroagrícola do País, a Sanda – Serviço Aéreo Nacional de Defesa Agrícola. A empresa prestou serviços e combate a gafanhotos e outras pragas para o governo gaúcho e produtores rurais.
Ela durou até o início dos anos 50, quando Fontelles foi para o Rio de Janeiro e Candiota trocou a aviação pelo comércio e ações sociais. O próprio Estado do Rio Grande do Sul acabou assumindo depois o serviço de aviação agrícola para atender os produtores. A exemplo do que o Ministério da Agricultura fez com a campanha contra a broca-do-café, em São Paulo.
Já nos anos 1960 começaram a surgir outras empresas de aviação agrícola, o setor foi organizado no final da década, quando nasceu a legislação da atividade e surgiram os cursos de piloto agrícola e de especialização para engenheiros e técnicos agrícolas para atuarem no setor. Até hoje, a aviação agrícola é a única ferramenta com regulamentação específica e ampla no Brasil. O que, aliada à alta tecnologia embarcada, faz dela uma das ferramentas mais segura e eficiente em campo. De quebra, hoje atuando forte também no combate a incêndios florestais – protegendo tanto lavouras quanto reservas naturais contra as chamas.
Em abril de 1989 (13 anos após de seu falecimento) Clóvis Candiota, tornou-se Patrono da Aviação Agrícola. Isso pelo Decreto-Lei 97.699, que também oficializou o 19 de agosto como Dia nacional da Aviação Agrícola.
Hoje, o setor aeroagrícola brasileiro é o segundo maior e um dos melhores do mundo, com mais de 2,5 mil aeronaves atuando em pelo menos 23 Estados – em lavouras de cana-de-açúcar, soja, milho, algodão, café, florestas comerciais e outras, em aplicações de defensivos químicos ou biológicos e fertilizantes, além da semeadura de pastagens. Agora abrangendo também o segmento de drones.